Em um cenário onde a neve não traz o aconchego do inverno, mas sim o silêncio gélido da morte, a Netflix nos presenteia com O Eternauta (2025), uma adaptação ambiciosa da icônica graphic novel argentina de Héctor Germán Oesterheld. A série mergulha o espectador em uma Buenos Aires dizimada por uma nevasca mortal, transformando a metrópole em um campo de batalha pela sobrevivência. Mais do que uma simples história de invasão alienígena, O Eternauta é um conto visceral sobre a resiliência humana, a formação de laços em meio ao caos e a eterna luta contra um inimigo invisível e implacável. Prepare-se para uma jornada que testa os limites da moralidade e redefine o significado de comunidade quando o mundo como o conhecemos desmorona.
O Chamado do Herói Anônimo: Narrativa e Desenvolvimento em Tempos de Crise

A narrativa de O Eternauta se destaca por sua capacidade de construir tensão gradualmente, imergindo o público no desespero palpável de seus personagens. A série acerta ao focar não apenas na ameaça externa, mas principalmente nas dinâmicas internas do grupo de sobreviventes liderado por Juan Salvo. A adaptação consegue traduzir a atmosfera opressora da obra original, utilizando o suspense e o mistério em torno da natureza da invasão e dos invasores – os temíveis “Eles” e seus peões, os “Cascarudos” – como motor para o desenvolvimento da trama. Vemos a transformação de cidadãos comuns em guerreiros relutantes, forçados a tomar decisões impossíveis onde cada escolha pode significar a vida ou a morte.
Uma das grandes virtudes da série reside na fidelidade ao espírito da HQ, explorando temas como o autoritarismo, a importância da união e a crítica social velada, que permanecem assustadoramente atuais. Por exemplo, a forma como a desinformação e o medo são manipulados pelos invasores encontra paralelos com crises contemporâneas. No entanto, a série por vezes apressa certos arcos narrativos, especialmente no desenvolvimento de alguns personagens secundários, que poderiam ganhar mais profundidade e tempo de tela para que suas motivações e sacrifícios tivessem um impacto ainda maior. A sensação de perigo constante é bem estabelecida, mas alguns confrontos poderiam ser coreografados com um pouco mais de clareza para evitar confusão em cenas de ação mais intensas.
Sob a Neve Mortal: Elenco e Atuações que Sustentam o Fim do Mundo

O peso de O Eternauta repousa significativamente sobre os ombros de seu elenco, encabeçado pelo renomado Ricardo Darín como Juan Salvo. Darín entrega uma performance contida, porém carregada de emoção, transmitindo a angústia e a determinação de um homem comum forçado a se tornar um líder em circunstâncias extraordinárias. Sua interpretação de Salvo é a de um pai de família que, inicialmente relutante, assume a responsabilidade de proteger não apenas os seus, mas todos que se unem à sua causa. A química entre Darín e Carla Peterson, que interpreta Elena, a esposa de Juan, é palpável, oferecendo momentos de ternura e humanidade que servem como um respiro em meio à tensão constante. Peterson consegue equilibrar a força e a vulnerabilidade de Elena, uma mulher que precisa ser resiliente diante da perda e do desconhecido.
César Troncoso como Favalli, o intelectual e pragmático amigo de Salvo, também merece destaque. Troncoso personifica a racionalidade e o ceticismo científico do personagem, servindo como um contraponto crucial às decisões mais impulsivas e emocionais de outros membros do grupo. Sua presença em tela é marcante, e suas interações com Salvo frequentemente elevam o nível dos diálogos. Andrea Pietra, no papel de Ana, e Ariel Staltari, como Omar, complementam o núcleo principal com atuações sólidas, representando diferentes facetas da resposta humana ao trauma e à sobrevivência. Pietra consegue transmitir a dor e a resiliência de Ana, enquanto Staltari dá vida a um personagem que evolui ao longo da narrativa, mostrando as nuances do medo e da coragem. A escolha do elenco, de forma geral, parece acertada, com atores capazes de transmitir a gravidade da situação sem cair no melodrama excessivo. Um exemplo específico da força das atuações pode ser visto na cena em que o grupo precisa tomar a difícil decisão de deixar para trás um de seus membros infectado pela neve mortal; a dor e o conflito moral são visíveis nos olhares e gestos de cada ator, especialmente Darín e Peterson.
A Estética do Apocalipse: Direção, Fotografia e Design de Produção

A direção de Bruno Stagnaro busca um tom realista e sombrio, afastando-se de espetáculos visuais grandiloquentes para focar na claustrofobia e no impacto psicológico da invasão. A cinematografia é um ponto alto, utilizando uma paleta de cores frias e dessaturadas para acentuar a desolação de uma Buenos Aires coberta pela neve assassina. Os enquadramentos frequentemente priorizam os rostos dos personagens, capturando suas reações e o peso emocional de suas provações. Cenas como a primeira aparição da neve caindo sobre a cidade são visualmente impactantes, transmitindo uma beleza sinistra e mortal.
O design de produção recria com competência uma cidade paralisada pelo desastre. As ruas vazias, os carros abandonados e os interiores improvisados como abrigos contribuem para a atmosfera de desesperança. Os efeitos visuais, especialmente na representação dos “Cascarudos” e de outras manifestações da ameaça alienígena, são, em sua maioria, eficazes, embora em alguns momentos possam parecer um pouco menos polidos em comparação com produções de orçamento mais vultoso. No entanto, a série compensa isso com uma direção de arte que prioriza a sugestão e o suspense, em vez de mostrar explicitamente todas as ameaças. A trilha sonora também desempenha um papel fundamental, com composições que variam entre o melancólico e o tenso, sublinhando os momentos de perigo e reflexão. Um exemplo notável da produção é a recriação do estádio do River Plate como um dos refúgios, um local icônico transformado em símbolo de uma luta desesperada, o que visualmente é muito poderoso.
Entre a Moralidade e a Sobrevivência: Os Dilemas Temáticos de O Eternauta

O Eternauta transcende o gênero de ficção científica ao explorar profundas questões temáticas. A série, assim como a obra original, debate a tênue linha entre a moralidade individual e a necessidade de sobrevivência coletiva. O poder, em suas diversas formas – desde o poder opressor dos invasores até o poder que emerge da liderança e da união dos sobreviventes – é um tema central. Vemos como a ausência de uma autoridade central leva à formação de novas estruturas sociais, nem sempre justas ou democráticas. A tradição, representada pela vida antes da catástrofe, entra em choque constante com a modernidade brutal imposta pela invasão, forçando os personagens a abandonar velhos costumes e adaptar-se a uma nova e terrível realidade.
A lealdade, a traição, o sacrifício e a esperança são outros pilares temáticos habilmente entrelaçados na trama. A série questiona o que significa ser humano quando confrontado com a aniquilação, e como os laços de solidariedade podem ser a única arma contra um inimigo aparentemente invencível. A luta pela preservação da memória e da história, personificada na figura do próprio Eternauta, que narra os eventos, adiciona uma camada metalinguística que convida à reflexão sobre o papel das narrativas em tempos de crise. A série não oferece respostas fáceis, preferindo deixar o espectador ponderar sobre as complexas escolhas morais enfrentadas pelos personagens, como quando precisam decidir quem recebe os escassos recursos ou quem deve se arriscar em missões perigosas.
Um Legado Reimaginado com Bravura e Relevância
O Eternauta da Netflix é uma adaptação corajosa e, em grande parte, bem-sucedida de uma obra seminal. A série consegue capturar a essência da história original, atualizando-a para um novo público sem perder sua força crítica e seu apelo emocional. Com atuações convincentes, uma direção atmosférica e uma narrativa que prende a atenção, a produção se estabelece como um marco na ficção científica televisiva latino-americana. Apesar de pequenas falhas no ritmo de desenvolvimento de alguns personagens secundários e ocasionais irregularidades nos efeitos visuais, as virtudes da série superam em muito seus defeitos. “O Eternauta” não é apenas entretenimento de alta qualidade; é um convite à reflexão sobre nossa própria capacidade de resistir, unir e lutar pelo futuro, mesmo quando a neve da desesperança parece cobrir tudo.
Nota do IMDb: 7.7/10
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